Homem sem memória usa diário para não esquecer vexame do Brasil

Homem sem memória usa diário para não esquecer vexame do Brasil

Webmaster 11/07/2014 - 10:36
Morador de Lins guarda lembranças em cadernos.
Lesão no cérebro pode ter sido causada por agrotóxicos.



O vexame protagonizado pela Seleção Brasileira diante da Alemanha na última terça-feira (8) assombrará uma geração de brasileiros pelo resto da vida. Mas, para um morador de Lins (SP), a derrota já é uma lembrança distante e, daqui a pouco, simplesmente deixará de existir. O aposentado Otávio Aparecido Costa Sanches, de 53 anos, sofre de perda de memória retrógrada e só se lembra de fatos ocorridos há até sete dias.

Para contornar o problema, ele faz centenas de anotações diárias, que vão desde assuntos corriqueiros até tópicos mais marcantes, como o placar de 7 a 1 para a Alemanha. “Hoje [quinta-feira, 10] eu ainda tenho algumas lembranças do jogo, mas a minha impressão é que aconteceu há uns quatro meses, então é tranquilo. Sempre vou saber que teve esse jogo e esse resultado, mas não vou ter a sensação de ter vivenciado. Acho que isso é bom”, afirma.

A anotação a respeito do fatídico jogo é a única sobre o tema a constar em seus diários. "Acho que não me importo muito com isso [Copa do Mundo] porque eu não anotei nenhum jogo, esse foi o único. Mas mesmo com esse problema seria difícil esquecer, porque está toda hora na TV", brinca.

A "vantagem" de não sofrer com a maior derrota do Brasil na história da seleção é fruto de um drama que já dura dois anos. Otávio conta que o problema surgiu por conta de uma severa intoxicação causada por pesticidas, contraída nos anos em que trabalhou como agente de vetores.

Diagnóstico médico
O caso dele é acompanhado pelo Hospital das Clínicas da Unesp de Botucatu (SP). Segundo o hospital, um quadro de intoxicação por organofosforado foi diagnosticado pelo rastreamento do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) da universidade.

Esse tipo de intoxicação, de acordo com o prontuário médico do paciente, ocorre normalmente com pessoas que trabalharam com o controle de pragas, usando inseticidas ou agrotóxicos e pode, entre outros sintomas, causar perda de memória.

O agente de vetores conta que começou a trabalhar no controle de pragas em 1994. Naquela época, a aplicação de inseticidas nos prédios públicos e em diversos locais era feita sem equipamentos adequados e sem um rodízio de serviço necessário. “Usávamos todos os tipos de pesticidas como, por exemplo, o mata-mato, hoje proibido em muitos lugares. Na época, nossas luvas e capacetes não ofereciam a proteção adequada. Usamos tênis por muito tempo até ganhar uma bota", lembra.

Em 2004, os sintomas apareceram na forma de uma alergia, acompanhada de dores de cabeça e lapsos de memória. “Eu estava na sala, de repente ia para o quarto e não lembrava como tinha chegado lá. É como se fosse um sonâmbulo, mas acordado. Já cheguei a ir dirigir na estrada até me dar conta de não perceber para onde estava indo", relata.

Em 2010, o esquecimento piorou e os médicos de Lins diagnosticaram a doença de Mal de Alzheimer. Em seguida, Otávio foi aposentado por invalidez. No entanto, as centenas de cópias de exames e testes fazem o ex-servidor público desconfiar das causas da ausência de memória. “Eu passei por médicos em Bauru, Promissão, Lins e Botucatu. Foram 14 profissionais, mais ou menos. Eu sempre aceitei tudo o que eles diziam para mim, mas recebi tantos diagnósticos e tão diferentes que fica difícil aceitar o que eles dizem que acontece comigo”, desabafa.

Entre os diagnósticos recebidos, os que se destacam no diário do aposentado estão pseudodemência e até esquizofrenia. Entretanto, nenhuma das patologias foi confirmada na sua totalidade e nem apontam relação à hiperfusão temporal direita, uma lesão no cérebro comprovada pela intoxicação por organofosforado. “Já disseram que eu tenho inúmeras doenças, mas vários médicos também já desconfiaram de mim. Um deles chegou a perguntar se eu gostava de trabalhar. Se eu não gostasse, poderia ficar quieto em casa e não pedindo ajuda”.

Dias escritos
Por não se lembrar do nome das ruas, Otávio somente sai de casa na companhia de um dos filhos que ainda mora com ele e com a esposa. Após a aposentadoria, ele passou a se dedicar de forma intensiva aos diários, onde anota lembranças e informações relevantes – para ele – e aos quais quase ninguém tem acesso.

A ideia surgiu depois de ter ficado incomodado com as perguntas constantes de familiares e a ausência de memória para respondê-las. “Todo mundo me perguntava coisas que eu não sabia responder. Foi quando eu também percebi que não estava bem. Eles dizem que eu esqueço, então só acredito se estiver escrito no caderno. É uma defesa minha”, relata.

Segundo o aposentado, a falta de memória resultou em uma crise de depressão profunda combatida hoje com cerca de 10 medicamentos diários e atenção integral da família. “Fiquei angustiado demais em perceber que, para mim, o meu irmão não existe. Eu não me lembro de nada e imagino a dor que isso causa na minha família. Sei que eles querem o pai, o marido e o irmão de volta”, lamenta.

Além de escrever sobre tudo – incluindo a entrevista que concedeu ao G1 –, o aposentado também estuda diariamente. Ele passa manhã e tarde organizando arquivos com vários assuntos para manter as informações atualizadas sobre português, matemática, geografia e placas de trânsito.

“Se eu não vejo algo por muito tempo, não sei o que é. Como um relógio, por exemplo. Se alguém não me explicar, eu não me lembro para que serve. O mais difícil é recordar as operações matemáticas e entender o sentido das placas de trânsito. Além disso, também fico vendo a foto dos meus familiares no computador para não esquecer do rosto deles. Me dá uma angústia muito grande não me lembrar das pessoas. Sei como são as feições, mas não me recordo do jeito de cada um deles”, conta.

A angústia de Otávio é compartilhada por sua mulher, Sueli Sanches, com quem é casado há 32 anos. “A gente tenta levar tudo na normalidade, mas é insuportável. Ele não se lembra do nome dos pais, não sabe andar por ruas que antes conhecia como a palma da mão, não se recorda do jeito do filho, entre outras coisas. É muito difícil", revela.

Intoxicação por organofosforado
Segundo o pesquisador e biólogo do centro Antônio Francisco Godinho, os sintomas sutis da intoxicação como, por exemplo, dor de cabeça e problemas na pele, fazem com que as pessoas não relacionem com uma doença de quadro grave.

Conforme estudos, a intoxicação por organofosforado devido a um acidente de trabalho ocorre, na maioria dos casos, por absorção cutânea (pela pele) ou respiratória, enquanto a ingestão oral é mais comum no envenenamento intencional. A morte após uma única exposição aguda pode ocorrer dentro de cinco minutos a 24 horas, dependendo da dose.

“As substâncias chamadas de agrotóxico atuam sob o sistema nervoso e são capazes de provocar várias alterações, como, por exemplo, problemas de locomoção, dificuldade de memorização e pode prejudicar também o coeficiente de inteligência”, afirma Antônio.

A exposição ao organofosforado é maléfica e o equipamento de proteção individual minimiza os danos, mas não impede que a pessoa que utiliza uma dose diária do produto não tenha problemas no futuro. “As pessoas que trabalham com agrotóxicos devem procurar serviços especializados e médicos toxicologistas para fazer a análises de sangue. Eles, inclusive, devem procurar os laboratórios de forma preventiva”, afirma.

Otávio é acompanhado por médicos neurologistas do Hospital das Clínicas de Botucatu (SP). Os profissionais envolvidos no caso preferiram não dar entrevista, mas informaram, por meio da assessoria de imprensa, que o aposentado realmente afirma que não se lembra de nada com mais de sete dias, possuindo, portanto, um prejuízo de memória retrógrada.

Enquanto não recebe um diagnóstico definitivo, Otávio segue com a rotina de anotar em seus diários tudo o que acontece a sua volta. “Ele precisa de um diagnóstico mais convincente. Todos nós queremos saber o que há de errado com ele. O Otávio está preparado para qualquer informação dos médicos, pois ele sabe que vai esquecer mesmo. Mas nós, não. Nós precisamos de respostas”, diz Sueli.


G1

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